
Que canto há de cantar o indefinível?
Que canto há de cantar o indefinível? O toque sem tocar,
o olhar sem ver A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis. (Hilda Hilst, Do Desejo, 2001)
Entre. Pegue um dos pequenos cubos empilhados – azul ou branco, à sua escolha. Antes, ou mesmo depois de percorrer a exposição, leia esse texto com o cubo em suas mãos. Perceba lenta e calmamente sua forma, matéria, textura, temperatura, tamanho. Deixe que esta espécie de prova do real seja sua companhia na experiência da visita.
A exposição Quando deixou de ser reúne obras recentes das Irmãs Gelli e trata, entre tantos outros conceitos, de um conjugar de dualidades. Há, neste movimento, algo que excede o que seria um contraste, ou seja, não percebemos nas obras elementos que possam ser apontados como ambivalentes ou excludentes entre si.
Diferente disso, notam-se coexistências e passagens que acontecem desde o processo de realização das peças, na matéria que é trabalhada entre os estados sólido e líquido, até a obtenção de uma geometria particular criada pelas artistas. Os trabalhos aqui exibidos, são moldados com estruturas e ferramental de criação cuidadosamente desenvolvido pelas autoras, numa plural manufatura, onde ambas compõem conceitual, formal, cromática e espacialmente cada etapa, combinando repetições e desvios ao longo do percurso.
A prática das artistas busca sucessivamente sublinhar, seja no incansável processo de realização das peças, seja no que se apresenta como obra final, a importância da presença, do que está diante de nós, do que vemos como matéria transformada e manejada no fazer (em duo, em diálogo). Deste modo, é especialmente pela presença conjugada, a nossa e a das obras, que algo importante acontece: é aí onde o que as artistas nos apresentam pode efetivamente ser corporalizado por nós. Portanto, o espaço do encontro conosco é um local intransponível para os trabalhos das Irmãs Gelli, nos permitindo questionar e, de certo modo, desfazer algo da crescente tendência global à virtualidade das relações, tanto no âmbito da arte quanto no da vida.
Caetano Veloso, na canção if you hold a stone (se você segura a pedra, em tradução livre), nos diz: se você segura a pedra, segure em sua mão, se você sentir o peso, você logo irá entender – numa aparente alusão à “prova do real”, pequena pedra que Lygia Clark dava aos participantes dos settings que realizava com seus objetos relacionais. Deixe que este cubo seja a sua pedra, olhe para o que está aqui apresentado e busque atravessar tal experiência considerando que, em todos os trabalhos, temos camadas invisíveis aos olhos, mas perceptíveis nas sensações. Cada etapa que deixou de ser nestas obras também nos dá a ver o que aqui está, mesmo que por uma indefinível e ressonante ausência.
A estrofe do poema de Hilda Hilst, acima em epígrafe, inspiração para o título deste texto curatorial, ensina: cantar o indefinível, tocar com os olhos, entrelaçar os indescritíveis. Possível partitura, caros leitores-espectadores, para nosso mergulho na dialética visual e sensível que as Irmãs Gelli apresentam aqui.
Daniela Mattos (Curadora)









QUANDO DEIXOU DE SER / LURIXS 2023
curadoria: Daniela Mattos
"A exposição reúne, nos vinte e cinco trabalhos, a produção artística recente das Irmãs Gelli. As obras, moldadas em cera e outros materiais orgânicos, se materializam na presente mostra como objetos de parede, esculturas ou mesmo em outras linguagens artísticas como o vídeo e a performance.
Os trabalhos apresentados articulam-se com elementos da arte concreta e neoconcreta brasileira e seus desdobramentos posteriores, seja pelas questões formais, conceituais, ou mesmo na importância da medida relacional entre obra e espectadores, conjugando aspectos constitutivos da arte contemporânea de modo ímpar. A geometria sensível desenvolvida pelas artistas está presente em cada peça desta mostra, sendo resultante de um processo profundamente dialógico que combina repetições e desvios ao longo do percurso de criação."
Daniela Mattos






Performance "Encontro Presencial" / LURIXS 2023
Geometricamente regular, a princípio sólido. Um tanto de solidez associada à uma percepção de solitude, ou seria solidão?
Resolvemos atravessar a matéria para encontrar o olhar ali presente e atento. Criar e manter relações em meio a um mundo extremamente digitalizado, apressado, tornou-se muito mais difícil. É necessária calma, presença, atenção ao fogo, à cera quente, é preciso estar ali construindo essa conexão que se dá a partir do romper da camada que nos separa. São tantas camadas, afazeres, trabalhos, eventos.
Como se o ar fosse sólido, como se essa distância fosse física, mas nem sempre ela é. Não olhamos mais pro vizinho, o celular nos captura no almoço, no banheiro, na caminhada…o olhar para o entorno e consequentemente para o outro se perdeu. O olho no olho virou tela na tela, e ao mesmo tempo que a tela proporcionou um encurtamento da distância física, ela também criou um vazio enorme e uma dissolução do encontro presencial, do toque…
Existe aqui uma fronteira que materializa o espaço entre os olhares. Algo com muita matéria física que evidencia esse distanciamento de forma literal e concreta. Escolhemos ativamente, a partir da força do fogo, romper essa fronteira e transformá-la através da mudança de estados da matéria. Aos poucos vamos perfurando-a e revelando seu recheio, são muitas camadas até o encontro.


