
NOSSAS AVÓS SABIAM | CENTRO CULTURAL CORREIOS - 2024
O espaço desta sala é tingido com a memória de um dia que passou, como um encantamento possibilitado pela cena que é construída. A exposição das Irmãs Gelli, Alice e Gabi, guarda o calor do toque e do cuidado. A busca intuitiva, as questões construtivas e a interação tátil do espectador com o objeto talvez sirvam como pano de fundo histórico para a percepção desta mostra. Aqui, contudo, há muito mais:
Nossas avós sabiam muito, mas talvez falemos ou pensemos pouco sobre isso. Esta exposição é um convite para acessarmos lembranças que parecem escondidas dentro de um repertório de gestos e objetos. Através de diferentes instruções, explícitas ou implícitas, existe um apelo para criarmos juntos, desenvolvendo uma composição onde a memória aparece enquanto um importante vetor – aí caberão não só as lembranças pessoais das artistas, mas as histórias de todos nós.
Alice e Gabi não criam apenas uma expografia; elas desenham de forma simbólica no espaço, transformando a sala dos Correios em uma atmosfera coesa e total, onde a proposição é um convite à abertura diante do outro, uma convocação da lembrança. Ao mesmo tempo, uma quebra da linearidade temporal é sugerida, buscando um olhar para o futuro. Seus trabalhos constroem uma narrativa sobre o saber das avós, transmitido ao longo da vida, como um refúgio diante da hiper digitalização e da aceleração contemporânea que muitas vezes diluem nossa atenção e relação com o conhecimento.
O afeto é um elemento essencial nesta exposição, atravessando os corpos e se manifestando nos encontros com as obras. Em meio à implacável colonização do tempo que sabemos enfrentar na atualidade, parece cada vez mais difícil ter a capacidade de perceber a força que as coisas têm de nos afetar. As Irmãs Gelli nos convidam a desacelerar o olhar e o gesto, ao sentirmos a transmissão de suas manualidades através da feitura das obras apresentadas, assim como a atuação do tempo na transformação das matérias que compõem os objetos aqui expostos. Alice e Gabi buscam ocupar ativamente suas mãos, criando questionamentos entre suas produções e os apagamentos gestuais que são típicos do nosso tempo – quem nunca se percebeu passando mais tempo mexendo na tela do celular do que fazendo qualquer outra coisa com as mãos?
Utilizando objetos familiares repletos de história, como panela de vó, lençol, móveis antigos, uma máquina de escrever, as artistas criam uma cena que nos mobiliza a compor com a atmosfera apresentada, tecendo uma malha de significações que inevitavelmente irá pairar no ar e transformar essa exposição a todo momento. Ao mesmo tempo, observamos os materiais usados e as formas criadas pelas artistas como atravessados de distintos modos pela questão incontornável da crise ecológica global – o plástico reciclado aparece dando vida a alguns objetos, a presença da palha natural cria formas que nos revelam fluxos de passagem e necessidade de respiro.
Nesta exposição, novas possibilidades de pensar e sentir se abrem. Partimos do pressuposto de que culturalmente não sabemos lidar bem com o conhecimento ancestral, não à toa chegamos no cenário no qual estamos. Neste encontro, a potência das proposições se torna ação. Há uma força gestual, que é forte e sutil ao mesmo tempo e abre a experiência dos visitantes para práticas de cuidado. Seja escrevendo uma memória sobre a avó, participando da construção de obras que se dão no e pelo encontro, ou apenas recebendo a narrativa com sensibilidade, permitindo experiências que convocam a mente e o corpo.
Em "Nossas Avós Sabiam" não há separação entre saber e sentir. A atmosfera do museu se transforma: ao tocar o cubo no momento da chegada, a pele se torna um órgão de comunicação fundamental, conectando-nos à experiência e refletindo sobre nossa relação com o mundo. As obras das Irmãs Gelli, nessa ocasião, sugerem a arte como uma abertura ao outro, uma força geradora de diferença, explorando a relação entre memória e expressão, afeto e comunicação.
Alice e Gabi Gelli nos convidam a mirar o passado e desembaraçar nosso olhar, lançando-o a um futuro mais harmonioso. A superioridade humana falhou, sabemos. As formas híbridas indicam composições mais complexas, onde a natureza e a cultura se confundem. Não sabemos se podemos segurar o céu, mas aqui tentamos imaginar um esforço manual e criativo necessário para não o deixar cair por completo. As instruções presentes nesta exposição convocam o pensamento e a memória sensível, afirmando a força da vida como acontecimento, se vista para além de uma linha de tempo projetada para frente. Junto a isso, nos conectam com as histórias que a compõem, desde nossas próprias até as que ouvimos de nossas mais velhas. Elas questionam nossos modos de atenção, variando-os, e nos colocando diante da urgência de encontros mais genuínos com o outro e com nós mesmos.
Daniela Avellar (curadora)


















NOSSAS AVÓS SABIAM SOBRE O PESO DA AUSÊNCIA | vídeo performance
Um objeto simples é jogado de um par de mãos a outro. O gesto é repetido continuamente, não como em um jogo esquemático, mas como um ato carregado de intenção e cooperação. O cubo feito de argila terracota traz uma forma que está presente em outras produções das Irmãs Gelli. A escolha nunca é apenas formalista, mas uma manifestação da geometria também sensível, que está inscrita nas coisas do mundo, refletindo a arquitetura do sujeito e das relações.
Nesse caso, através do impacto do calor das mãos, do toque e movimento, as formas rígidas do cubo suavizam. Ele escorrega, se deixa moldar. Suas quinas e arestas se dissolvem e arredondam. Gradualmente esférico, o objeto suscita a passagem e a presença. O que era sólido e definido, de certa forma, se permite transformar. Essa não é uma imagem que acontece ao acaso, mas demanda a ação e a presença das participantes.
Nossa experiência cotidiana é facilmente excluída da percepção atenta e da presença. Esse talvez seja um sintoma identificado constantemente nas relações. Nesta vídeo-performance, as escolhas instalativas de Alice e Gabi criam mais uma camada narrativa: aqui, o céu capturado pela câmera está no chão, produzindo sobre nossos pés alguma infinitude, como se pudéssemos replicar esses gestos transformativos que dançam entre lá e cá, de uma mão a outra, e aplicá-los em nossa vida.
A outrora solidez da argila se conecta ao céu e à terra, é como se o material e o etéreo criassem uma dinâmica que é ao mesmo tempo física e metafísica. Do gesto, a simplicidade se faz essência: lançar e receber o cubo, poder incidir no tempo através de uma intenção capaz de aterrar a atenção ao mundo que se habita.
O cubo esférico é um testemunho. O que nesta performance nos convoca a exercitar a presença talvez seja algo bastante central nesta exposição das Irmãs Gelli, algo que encapsula as tentativas de estimular, através da manualidade, da participação e do exercício poético, uma reflexão sobre as existências.
Daniela Avellar (curadora)